Matar a curiosidade e a fome II

Percebo muito da cultura de um povo pelo que é a culinária deste povo. Pense na nossa, brasileira: construída a partir de influências distintas, das escravas africanas que mostraram todo o charme e sabor dos feijões pretos e coloridos (sim, há diversos feijões no mundo, principalmente os de origem africana, aliás ali percebo ser o berço de tudo...), a criatividade da doçaria portuguesa que ganhou nova roupagem nos pratos singelos como o pudim de leite e o quindim, sem falar na pizza nostra que bate de dez a zero todas as outras que já experimentei neste planeta (e para corroborar o teste digo que as paulistanas são pole position, faça o teste e se delicie...).

Todo este comecinho é para lembrar o quanto a culinária conta histórias. Perguntei à minha amiga Myriam – inteligente e linda que dói, pena que ela ignora isso... – e tive desde receitas saudáveis que unem praticidade e agilidade na execução (a dica das abobrinhas foi show) até novas variações com as bolachas de matzá. Por tudo isso adianto que vou explorar mais este potencial Myriano para unir história e comidinhas.

Eu aprendi uma receita com minha mãe, mas eu nunca a fiz. Talvez por preguiça ou por vontade de manter intacta a memória do sabor de quando ela fazia, os tais bombons Maria Dolores, com chocolate duro por fora e recheio de passas e mandioquinha (a famosa batata baroa, cariocas). O chocolate é parafinado, forma uma casca firme e o recheio é exuberante. Segundo ela, nasceu a receita de uma tentativa de fazer com que a mandioquinha fosse “comida” pelas crianças, para isso nada melhor do que bombons, não é? Muito criativo.

E assim não faltam histórias de comidas bem-sucedidas nascidas ora em berço esplêndido, ora em situações limite. Outra amiga conta que era muito novinha quando veio a SP. Sobrava fome e fartava estômago. A mãe teve a idéia de comprar os miúdos de boi – baratíssimos – para fazer uma sopa com batatas, mandioca e o que mais houvesse para engrossar o caldo e fazer a carne render. Virou a “sopa da força”, que criou minha amiga e seus oito irmãos. Três décadas depois eles ainda se encontram e no inverno a “sopa da força” volta ao cardápio numa doce lembrança daquela que agiu criativamente com os poucos recursos que tinha, mas transformou a história dela e de mais nove crianças, e seus descendentes, e a mim, que já provei e posso dizer que é uma delícia.

A receita? Cozinhe a carne bem temperada na panela de pressão, com bastante água, reserve tudo. Cozinhe com água a batata e o que quiser para engrossar: beterraba, cenoura, mandioca, inhame... Escorrida a água (guarde um pouco para o caso de ficar grossa demais), o tempero clássico de cebola e alho refogados se junta à carne desfiada, os legumes cozidos e amassados, água restante e mais cozimento para os sabores se unirem amorosamente. Um pão dormido fatiado acompanha o prato; se quiser, troque por uma taça de vinho, para não engordar...

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