Mentiras sinceras?

Que o ser humano gosta de ser iludido, não tenho mais dúvidas. É como a frase da cultura popular brasileira: “finge que é verdade que eu finjo que acredito, ok?”, ou ainda “cada um enxerga o que lhe convém”. Podem mudar os cenários, as linguagens, o idioma, a forma, mas o sentido de conforto que certas mentiras fazem sentir agrada a muitos, não a todos.

Afirmo isso porque prefiro saber uma verdade desagradável do que uma mentira que irá me machucar ainda mais no futuro. No entanto, faço uma ressalva a algo que pode parecer altamente pecaminoso, que é a omissão.

Omitir me parece menos cruel do que a mentira. Por vezes a omissão acaba por ser a melhor saída, principalmente em situações onde a informação poderia (ou poderá) acelerar um processo que talvez nem aconteça.

Digo isso pela experiência vivida na área da saúde. Os profissionais experientes sabem dizer – com base em seu feeling – o que dizer a certos pacientes e mesmo familiares quanto a um quadro clínico. Há uma discussão eterna: falar ou não falar sobre o grau e intensidade de uma doença ao paciente? Colocando em termos práticos: para um paciente com câncer, mas que pode conviver com a doença por muito tempo sem a perda da qualidade de vida – como é comum nos quadros de câncer de próstata – vale dizer detalhadamente o problema ou apontar que há algo que requer cuidados maiores, bem como toda uma posologia que precisa ser seguida à risca para garantir qualidade no dia a dia, mas sem “abrir” claramente o que se trata?

Recentemente acompanhei isso pelo olhar do médico, do profissional da saúde. Ele me contava de um paciente exatamente com a condição que descrevi acima. Câncer de próstata, mas com quadro irregular de diabetes. O tratamento deu devido peso a ambos problemas, inclusive enfatizando mais a diabetes, que atingia picos de descontrole. O câncer vinha sendo tratado, e isso se prolongou por cinco anos. Neste tempo, o paciente viu a segunda neta nascer, viajou para o Oriente (sonho de rever parentes deixados na Síria no tempo da guerra), namorou a esposa com brindes não alcoólicos, passou o réveillon à beira da praia com a família e deixou esta dimensão terrena há um mês por conta de um acidente de trânsito.

Meu amigo médico sentiu a perda do paciente com menos dor no coração porque ele aproveitou intensamente a vida, seguindo sua prescrição e colocando em cada medicamento ingerido a vontade de viver, não importando qual o problema que iria um dia causar o seu fim. Não foi o paciente que chegou cheio de problemas e despejou sobre o médico – ele omitiu do meu amigo os problemas que tinha por ter perdido pessoas queridas em meio a um conflito e que sentia a culpa de ter deixado todos sem notícias, sem qualquer informação – e guardou a receita médica no bolso. Ele se comprometeu com a vida e com o sucesso do profissional que o atendia; meu amigo se comprometeu em fazer do tratamento a melhor experiência possível, sem mentiras, sem ilusões, mas com a parcimônia nas palavras e atitudes tanto para ele quanto para os familiares.

Pela experiência de meu amigo, informar um quadro clínico pode selar o destino de certos pacientes. Dizer “câncer” a alguns significa uma motivação para lutar e viver; para outros é uma sentença de morte anunciada.

Minha experiência pessoal neste tema é dolorida, mas serve como fechamento para este texto.

Em 1976 ouvi do médico da minha mãe que ela sobreviveria por, no máximo, seis meses. Eu ouvi a frase junto com meu pai, e na época eu tinha 12 anos. Não preciso dizer que contei os 180 dias possíveis da vida dela com medo, insegurança, acordando de noite pra ver se ela estava ainda viva, se respirava. No dia seguinte acordava com muito sono, mas aliviada em saber que ela estava viva, mesmo com todas as seqüelas que a doença deixou.

Os 180 dias passaram, mas eu continuei com o medo, com a sentença da morte rondando a minha cabeça.

Um ano depois daquele vaticínio liguei para o consultório do médico para marcar a consulta para minha mãe – ele era disputadíssimo, e o tempo de espera para uma consulta particular levava até dois meses – e fui informada que ele havia morrido há um mês daquele dia, num acidente durante uma pesca submarina.

Minha mãe viveu 29 anos depois daquele “decreto de morte”, e recuperou boa parte dos movimentos; viajou comigo para Cuiabá, reviu parentes, brindou diversos aniversários com caipirinha de pinga (que faço muito bem), comeu feijoada e tudo o que queria sem culpa ou restrição, escreveu um livro, deu muita risada, viu meu sucesso e progresso; e se foi desta dimensão em 8 de janeiro de 2005.

E até que ponto
a verdade de alguém
é uma mentira para mim
ou para você?

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