As vinhas da ira - ou somente raiva

Ao filme talvez você tenha assistido – é um clássico. O livro retrata bem a miséria que vem do progresso durante o período que ficou conhecido como a Grande Depressão americana, uma fase que começou com a crise de 1929 e se estendeu pela década de 1930. Mas o nome do livro e do filme traz a ira. A raiva.

A pobreza do Meio-Oeste americano é bem acentuada nas imagens do livro e sobretudo no filme, que é um primor principalmente por ter sido rodado com os recursos da época, que definitivamente não era moderna. O tom do filme é fiel ao livro, mostra o momento da obsolescência. Mexe profundamente, como acontece em geral nas situações que traduzem a dor, a raiva e a sensação de frustração, de impotência.

Os personagens são forçados a sair de suas terras, pois, na simplicidade de seu campesinato, perdem o espaço para a modernidade, as colheitadeiras, e assim perdem seu sustento, seu alicerce. E sentem a raiva de serem postos de lado, substituídos por um sistema mais rentável. Sentem a dor de serem eliminados, num um processo que não tem volta.

Não analiso o filme nem o livro com os olhos de quem não quer o progresso, mas de quem sente a fria névoa da inutilidade. Sentir-se inútil, inferior e ultrapassado é o que mostra As vinhas da ira. Um sentimento que muitos têm, independentemente do cenário onde vivem, simplesmente porque, como dizia o meu poeta preferido, “o tempo não para”. Parou, ficou para trás.

E a ira, a raiva entremeada da história é clara, como deve ser todo o sentimento, seja ele gostoso ou não. Tom Joad, brilhantemente interpretado por Henry Fonda (que conquistou com esse filme o prêmio de melhor ator da academia, em 1941), não esconde seu descontentamento e expressa o que sente ao longo da trama, assim como deixa brotar alegria quando sai da prisão e reencontra a família. Alegrias e tristezas ficam claras, lúcidas, e por meio delas o livro e o filme ganham intensidade e colorido. Não por acaso o diretor John Ford ganhou o prêmio da Academia.

Mas a ira... voltemos a ela.

Sentir raiva autêntica não é socialmente desejável. Experimente sair com sua raiva latente e verá que não é algo esperado na interação cotidiana – não vale usar o volante do carro para expressá-la – até porque nosso meio social preferiria que ela não existisse ¬– ela é feia, degradante. Mas existe, tem lugar, e duvido que não tenha sido experimentada por alguém um dia (nos escritos bíblicos fica claro que Jesus teve muitos, muitos momentos de raiva – e se Ele teve, por que não eu?)

Raiva pode virar ódio, se for mal administrada. No livro, a raiva dolorida e pungente de Tom Joad torna-se um veneno contra ele mesmo. Na vida real não é diferente. Esconda sua raiva inclusive de si mesmo e verá o cano do revólver do descontrole mirando exatamente na sua direção.

Sentir raiva, ira, descontentamento faz parte de um processo humano, dessa dimensão de desenvolvimento. Complicado é querer ignorar isso, deixar essa energia ficar na sombra, no lado escuro que teimamos em ocultar, em fingir que não existe. A raiva descontrolada e reprimida se transforma em veneno de inconsciência, como se vê na atualidade tanto nos abusos no Iraque – lembremos da prisão de Abu Ghraib, com as imagens dos combatentes americanos hostilizando os prisioneiros em coleiras como cachorros.

A ira descontrolada e não reconhecida traz inconsciência, revolta e destempero. Tom Joad no início se refere a ela como a lástima (ainda no campo oculto), e ao longo da trama ela vem à tona. E com a percepção do desconforto que traz, ela auxilia a tomada de decisões de um futuro melhor, na rota para a Califórnia.

A raiva existe, faz parte da dimensão em que vivemos e pode ser usada como uma bússola, se assim o permitirmos. Sob a luz, ela pode ser vista como uma trilha a se evitar, minimizando sofrimentos. Pense nisso.

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