A privacidade e o respeito, que eu respeito

Na década de 1990 ainda a AIDS era considerada incurável e um tabu. Estar com a síndrome era como um carimbo de incompetência, incapacidade e tudo de inadequado, portanto evitado e malvisto. Neste cenário um amigo comum estava adoentado há tempos, dizendo que seu problema era respiratório, um misto de rinite com asma e estados gripais. Ele melhorava e retornava ao convívio do grupo; de tempos em tempos se afastava para tratamento. 
Até que passou a ficar cada vez mais afastado... no entanto, num aniversário meu fez questão de ligar cedinho para ser o primeiro a me desejar um ano maravilhoso. Este gesto, na hora, me fez dar um muxoxo - afinal, era muuuito cedo para quem chegava da balada com o sol - mas hoje me emociona demais... quanto carinho!

O aniversário dele era dali a alguns dias do meu. Passaram-se alguns aniversários e um dia era o dele, liguei para cumprimentar. Disse da minha saudade. Ele desconversou. A voz ficou murmurando no meu ouvido por dias, até que num sábado de muito calor liguei para ele e disse que queria vê-lo. Já sabia por amigos comuns que ele estava licenciado do trabalho por conta do tratamento, pois o quadro era grave. 

- Eu quero te ver, me dá seu endereço. - Insisti muito.

Argumentou que era longe, tentou explicar um caminho mas eu tinha guia de ruas - aquele livrão grosso que eu manejava com muita facilidade, pois gosto de mapas  - e portanto eu chegaria porque "longe é onde não quero ir".

- Pode vir, eu vou te esperar. 

Atravessei São Paulo e cheguei certinho na casa dele. A mãe veio abrir a porta e entrei, esbaforida. Ele estava sentado no sofá, abraçamos um ao outro com uma saudade aumentada com a queda das máscaras. A cor da pele indicava o tratamento, a magreza e a falta absoluta de forças. Almoçamos juntos no sofá vendo televisão, rimos. Fui embora de coração apertado após ter ouvido dele:
- Você não vai me ver mais. Eu não queria que você viesse, pois quero que na sua mente fique a minha imagem como me conheceu. Não quero que fale com nossos amigos sobre mim, e vou vigiar você de onde eu estiver. Você veio de insistente, e eu deixei você vir para me despedir. Quando sair daqui de casa, não olhe para trás.

Soube que ele morreu dali a duas semanas; não comentei com amigos que tinha ido vê-lo. Isso foi algo como 1996.

Janeiro de 2017. Meu grande amigo e mentor havia comentado de problemas de saúde em novembro, mas por diversos contratempos não fui vê-lo. Resolvi chamar pela rede social, e combinamos que eu iria em sua casa num fim de tarde. Poucas horas antes do encontro, vem a mensagem.

- Eu não posso te atender, vamos marcar para outro dia.

Na hora o sentimento foi de raiva; afinal, me organizei com agenda para ir e bater aquele papo gostoso, orientar sobre cuidados na recuperação dele, lembrar dos anos quando trabalhamos juntos. Eu tinha expectativas, muitas. Não pensei nele. Sim, fiquei beeem chateada.

- Não confia em mim. Não quer me ver.

Dias e semanas passaram até que eu entendesse algo simples: ele não quer me ver. Ele quer ficar sozinho, com seu problema. 

Sim, a minha expectativa passou por cima da privacidade dele, num tremendo desrespeito, tal como fiz com o meu amigo muitos anos antes. Eu não entendia de finitude naquela época, mas hoje, pesquisadora de gerontologia, de envelhecimento, de doença e de morte, sei que existe o sentido de fim. Cada um lida com o fim do seu próprio jeito, e não há exatamente jeito certo. Há quem fale, há quem aproveite intensamente - até porque tecnicamente falando todos estamos caminhando para o fim dia a dia - e há quem queira guardar nos outros a imagem dos tempos áureos, dos tempos felizes. Meu mentor quer isso. A imagem de poder, do bonachão sempre com a resposta perfeita, a solução ideal. É assim que ele quer que eu o veja.

E eu assim o respeito...

Mas se ele ligar, mandar mensagem e me chamar, eu largo tudo para ir vê-lo, porque acredito que nada substituirá a energia do momento, do face a face - até porque para mim será uma gratidão imensa. Não será a minha vontade especulativa nem a expectativa, mas um amor.

Absoluto.

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