Eu escritora

Como dado curioso, no início de 2010 eu estava a cotar seguros para carro; dentre as empresas que contatei uma fez uma pergunta cuja resposta saiu naturalmente: “qual a sua profissão”, e eu respondi “escritora”.

O motivo de ter respondido isso nada tem a ver com a função em si; pensei que, dizendo ser escritora, eu poderia conseguir um bônus maior, já que escritores ficam quietinhos escrevendo e não atrapalhando o trânsito caótico do dia a dia – sem falar que acho que terão menos chances de se envolver em acidentes, que é o verdadeiro motivo do interrogatório da seguradora, quanto menor sua chance tanto melhor! Daí a rápida resposta trouxe uma outra pergunta do funcionário: “aqui não tem esta opção. Posso colocar jornalista, que é parecido?”

Pois eu resolvi, nas frações de segundo desta conversa, insistir na minha “carreira”, e concluí que ele teria que colocar no campo “outros” o ofício de escritora. Detalhe que acabei fechando o seguro com outra empresa, que nem se importou se eu trabalhava ou era desocupada; mas foi a primeira vez que me assumi “escritora”.

***

No relembrar de minha vida chego à conclusão que nasci escritora, não por uma escolha consciente; na primeira infância eu brincava sozinha, sem irmãos e sob os cuidados da minha avó – que inconscientemente foi a primeira pessoa a investir na viável possível um dia carreira de criadora. Eu tinha muitos, muitos brinquedos, e a única coisa que me vinha à cabeça fazer com eles era teatrinho, montava histórias que contava para minha avó e assim eles ganhavam nomes, idades, ofícios e tramas para viver. Minha avó tinha o trabalho de guardar os brinquedos no final, mas sabia o nome de cada um e o grau de parentesco. Eu contava a ela os lances que envolviam os personagens e ela sempre perguntava o que iria acontecer na sequência. Ela gravava na cabeça, já que nunca aprendeu a ler ou escrever.

Já na escola comecei a escrever de verdade, tanto o que a escola queria quanto o que eu queria. Fiz jornaizinhos por minha conta diagramados, datilografados – que me fizeram pensar como fazer as cópias, já que eu nem imaginava o processo editorial em escala. Escrevi peças teatrais para meus brinquedos e bonecas encenarem, além de personificar as bonecas com meus personagens, seus perfis psicológicos, conflitos e ansiedades. Todas as minhas bonecas, sem exceção, eram ansiosas.

Elas eram o combustível criador das minhas histórias, embora eu pensasse como poderia um dia convencer as pessoas dos atributos que eu impingia a elas. Lembro que eu tinha nove anos e em todas minhas tramas as bonecas personagens eram extremamente vaidosas e ricas, mal amadas, porém muito eróticas e com conflitos com a família. De onde será que tirei isso?

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Por muitos anos deixei a escrita dormindo na beira do mar... ou mais precisamente na beira dos meus pensamentos. Eu já não escrevia, usando caneta, máquina de escrever ou computador; eu pensava nas histórias enquanto cozinhava, caminhava, observava o mundo e atribuía características a gente que passava por mim, totalmente desconhecida. Muitas pessoas ganharam nome, perfil e futuro por conta da minha criatividade sobre elas. O jornalismo acadêmico de certa forma ajudou a empurrar a escrita para um porão onde ficaram as coisas velhas: as bonecas, os brinquedos, os escritos, meus familiares. Ali ficaram dormindo, escondidinhos.

O jornalismo diário era algo sonhado, até porque sempre acreditei que somente estaria completa como profissional se eu passasse por este “ritual de força”. Por meio dos milagres do mundo fui parar numa redação e tive um início pior que qualquer ritual de sacrifício, com direito a choro copioso no meio do dia e vontade de fugir dali. Mas, como em todo ritual de sacrifício depois tudo passa e você se torna o futuro algoz dos próximos novos – com direito a se divertir com o pânico que caleja a pele, os dedos e a memória. Ali eu não escrevia; eu fazia sabão, como uma operária das notícias. Lia, escrevia, dava título, fechava, punha foto e pronto. Pega outra e mais outra matéria, sem pensar muito – até porque não havia tempo para pensar mesmo; assim o dia ia, um após o outro, com direito a fugir do trabalho às 22h. Desenvolvi tecnologia de sair de um ambiente sem ser notada – isso dá um belo roteiro, já pensou?

***

Virei a escritora publicitária, aquela que escreve para enaltecer, louvar, colocar no pedestal e esquecer as mazelas. A escritora publicitária consegue escrever muito dizendo quase nada, chega a ser uma desperdiçadora de palavras. Ela, a escritora publicitária, é toda linda, toda charmosinha, todos gostam dela porque é uma delícia ouvir tanta beatitude nas suas doces e redundantes palavras; ela poderia ter ficado riquíssima, feito um casamento de princesa e estampar a capa da Caras. Mas ela, a escritora publicitária, não aguentou muito tempo e resolveu procurar histórias no bueiro, junto com os ratos no meio da noite; esta vida dividida de dia lindo e noite pecaminosa fez a escritora publicitária queimar o circuito interno – mas o fusível ficou inteirinho.

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Hoje escrevo muito menos do que crio mentalmente; tenho por vezes preguiça de escrever, preguiça de abrir o computador, rodar todo aquele protocolo panteão que diz facilitar a vida... mas a mente criadora fica elaborando personagens enquanto as mãos cortam a cebola, lavam alfaces, dirigem pela 23 de Maio enquanto uma música repetitiva tenta diminuir o ruído melodiosamente incômodo da rua.

No entanto, hoje escrevo com um pensamento diferente do que já fora pensado por mim ao longo das minhas encarnações escritora – pela primeira vez começo a pensar realmente que sou escritora sim. Escrevo, e escrevo bem; crio histórias temperadinhas – isso permaneceu oriundo dos velhos arquivos dos anos 70, altamente erotizados – e sinto que estou uma escritora que poderia perfeitamente morar na costa oeste americana escrevendo roteiros de sitcoms de curtas temporadas. Sou a escritora que divide o tempo com as plantas, os personagens, a pressão do estúdio que quer o capítulo pronto para começar a gravar ontem, o cachorro que dorme no sol, o homem que me incentiva e lê minhas histórias tanto para elogiar como dinamitar o que fiz com os personagens. Sou a escritora que vai à academia quase todos os dias para ver gente, sentir os músculos firmes e dissipar qualquer sedentarismo resultante de ficar sentadinha escrevendo. Escrevo e faturo alto com minhas ideias, meus personagens, minhas tramas e minha verve curiosa. Escrevo e faço meu tempo meu aliado para viver bem, pois que escrever na verdade é minha vida – sou a fofoqueira do cotidiano, que tudo vê, transforma e ajuda o universo a vender mais e mais sabão – mas não preciso ser a operária como um dia já fui.

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