Os Lixos e as Posses

Uma das maiores provas concretas da abundância da vida que vivemos atualmente é o volume imenso de lixos que o mundo produz a cada dia. Falando assim parece algo natural, socialmente aceito e universalmente tido como certo, do tipo “de fato, é isso sim”. Mas não é.

Nossos lixos (no plural, como devem ser) mostram muito de nós. Mostram como lidamos com nossas forças concretas, materiais; como lidamos com nosso concreto que traduz nossas idéias, aquilo que colocamos como energia material e depois desprezamos, ou melhor, nem pensamos duas vezes antes de descartar. São as idéias concretizadas, os amores desfeitos – que deixam herança em forma material – e tudo aquilo que passa.

Nossos lixos são riquíssimos. Tem histórias, tem valores – não só os pessoais, mas os recicláveis, veja quanto se faz de dinheiro com seus subprodutos – e tem emoção à vontade. Os lixos ficam lá à espera de quem venha os retirar, tirar do alcance dos olhos para que não nos incomodem mais. Daí vem uma pessoa, ou o caminhão, que faz a desmaterialização dos lixos do nosso campo visual.

Os lixos daí caminham nos coletores para onde eles são menos rejeitados, formam pilhas que merecem a disputa de pessoas em busca de mais recursos. Elas consideram natural fazer a “triagem”, e de fato geram renda a partir daquilo, que em essência virou lixo, mas teve seus dias de glória.

O que considero curioso no processo – que se vê natural – é como nós, individualmente, lidamos mal com nossos lixos. Nossa vida urbana corrida não nos permite pensar sobre como seria o mundo se não houvesse quem fizesse o descarte dos nossos lixos. É fácil ver isso: fique dois dias sem a visita do seu coletor para sentir isso (literalmente).

Hä um tempo atrás li uma tese linda, de um psicólogo que passou pela experiência de ser coletor de lixo. Ele se viu como um ninguém, pois as pessoas vêem os lixos como nadas (no plural também), e quem lida como os mesmos torna-se nada. Já viu alguém cumprimentando efusivamente e agradecendo ao coletor por ter retirado o “problema” da sua porta?

A seleção dos lixos - que nem todos fazem, pois para fazer isso é preciso ter contato com o que se desprezou, com o que estragou ou perdeu o valor (coisa para poucos, bons e valentes) – mostra a nós muito da nossa história, do nosso jeito e valor. Vai desde as cascas das frutas que saboreamos gostosamente, dos produtos que deles só sobraram as embalagens vazias, dos cadernos que acabaram (pois o ano passou), o pó que veio para a casa, detritos orgânicos humanos (que tem história para contar, mas ninguém quer ler o que há ali no papel Neve...), e até provas dos sonhos que foram acalentados (não falta vestido de noiva e biquíni nos lixões).

Tem aqueles que nunca colocam nada em seus lixos – preferem reter tudo com eles, seja jornal velho, roupa do tempo do onça, mas nada orgânico porque cheira, fede e isso incomoda – por não conseguirem o desapego. Deixar ir o que foi importante, mesmo que já sacramentado como terminado. É diferente de quem procura produzir poucos lixos, porque está comprometido com uma vida ecológica e economicamente mais inteligente – há quem nunca coloque nada no lixo porque todos os lixos orgânicos são processados (é preciso espaço para isso, e conhecimento prévio, não saia fazendo!!!) e os lixos não orgânicos ganham nova roupagem em estações de reciclagem, gerando emprego, renda e oportunidade. Estes últimos sabem ter sem ter a posse.

Ter a posse é algo que explica nossos lixos. Queremos muitas vezes ter tudo, mesmo que nem seja claramente esta a nossa vontade, mas sim a vontade dos outros, amigos, parentes, social system. Acabamos por vezes concretizando o que não queremos claramente, e depois isso se tornará um dos lixos que teremos de conviver por um tempo – como o excesso de comida, de bebida, de gordura, de produtos culturais obsoletos, de tranqueira, enfim.

Lembro que na universidade ouvi pela primeira vez algo que fez pensar: você se prende mais a ter a foto perfeita do que a perfeita lembrança do que viveu? Qual das duas vale mais? Será que a lembrança mental não te traz tanta emoção que possa suprir sua posse de coisas?

Outra posse que analisando nossos lixos vem claramente é a posse das emoções, nossas e dos outros. Somos inquilinos deste mundo, é o que dizem. Se isso for verdade, porque carregamos tanta tranqueira em forma de objetos, de relações mal resolvidas, de ressentimentos, preconceitos e resistências acreditados serem necessários – o famoso mal necessário – e deixamos de ter espaço para trazer as alegrias (plurais também), os deslumbramentos, as vontades que geram sonhos concretos. Acabamos por fazer coisas somente porque elas se manifestam, já que nosso espaço está tão repleto dos lixos das posses que há pouco onde colocar e preencher com vitalidade e paixão.

Os lixos e as posses andam juntos, poluindo não só o meio ambiente, mas o nosso ambiente inteiro, nossa vida plena. O possuir para controlar – eu quero ter o DVD mesmo que depois nunca mais assista, ou a roupa que um dia irá servir pois assim me apego a esta mentira – ocupa espaço demais num mundo onde espaço é algo tão caro, e tão prazeroso.

E há as emoções que geram lixos. Aquelas dores, ansiedades, lembranças ruins que não saem, não vão para a área de descarte, ficam ali na frente da prateleira olhando para seus donos de modo que os mesmos acreditam que elas sejam fundamentais para viver. Com a prateleira cheia é complicado abrir espaço para colocar, num lugar de honra, as emoções que fazem a diferença na vida. Quando há muitos lixos emocionais certamente houve muita posse, e ela traduz o que há de mais difícil na relação humana: querer o controle do outro, das emoções e do curso da vida.

E aí fica a pergunta: se tantos lixos de posse ocupam espaço, por que se mantém estes lixos? Para uma autoflagelação, talvez. Pois os lixos aumentam – como disse no início, há abundância no mundo, mesmo que alguns descreiam – e criam mais espaços que retém a luz da vida. A físiobioquímica explica que sem luz não há vida, então chegamos no impasse: como deixar a vida fluir com todos os lixos e posses?

Desapegando para gerar menos lixos e mais emoções, por certo.

O fato é que o mundo ainda não está preparado para lidar com seu lixo individual – que implica em responsabilidade. Vamos fazendo campanhas e trazendo conhecimento, ao mesmo tempo que geramos mais inovações e necessidades que geram lixos. O caminho para encontrar este equilíbrio é pessoal, reside no fundo, no eu escondido que não precisa de nada a não ser a si mesmo e o que lhe bastar para seu bem estar, sua suficiência. A resposta é solitária, única para cada pessoa, mas pode trazer a luz para relações concretas mais eficazes e emocionais mais satisfatórias, gerando menos lixos e mais memórias, mais reciclagens e mais materiais que façam a diferença. Sem que os lixos ocupem tanto o caminho.

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