A minhoca e outras histórias


Então no feriado você procura fazer tudo aquilo que nunca tem tempo para fazer, e pode se dar ao luxo de fazer sem o sentimento de “poderia estar fazendo coisa melhor”. Neste ritmo o que mais apeteceu, além da piscina social do prédio e a academia – esta última lembra um pouco trabalho, o que não é justo neste momento de ócio – foi olhar pelo bem estar geral das plantas.

Em tempo: no apartamento onde moro fiz questão de ter plantas. Acredito que planta é como um sinal inequívoco de “aqui tem um lar”. Planta natural, daquelas que fica feia e bonita conforme a vontade de seu dono, jamais aquela planta que brilha como verniz e é de verniz mesmo, que nem a mim, que sou distraída, dá pra enganar.

Para começar a atividade eu deveria ter à mão todas as ferramentas ideais para o bom cuidado com as plantas. Adivinha: não tenho nada, vai ter que ser na raça mesmo. E na criatividade: fiz do cabo de madeira do pincel um excelente objeto para afofar a terra e revirar de modo a soltar as raízes solidificadas das plantas. E foi nesta hora que nós nos encontramos.

Eu estava revirando a terra e num gesto de “vida natural” resolvi encarar a terra com as mãos mesmo. Sorte que os anjos da guarda tem o cuidado não só material como estético e logo mostraram que esta coisa natureba não ia dar certo. Pois se eu tivesse insistido poderia ter ocorrido uma tragédia e eu ter destruído a criatura antes mesmo de tê-la visto, e este texto nem iria existir. Daí optei por continuar com o pincel, devagarinho.

Nesta revirada mais lenta levantei um tacão de terra, e ela apareceu. A minhoca. Ela era slim, magrinha, talvez com sete centímetros e com aquele bronzeado de terra que só a minhoca consegue ter – e parecer que é terra mesmo, veja só. A aparição dela foi tudo: deu arrepio porque pensei o quanto o anjo da beleza me poupou de ter uma minhoca nos dedinhos; deu medo porque veio a imagem nojenta da minhoca como é mostrada nos gibis dos anos 70, e este medo na verdade é asco mesmo, pudera, não tenho contato com este tipo de animal, nem sei como proceder se isso acontecer...

Mas tudo isso levou frações de segundo. Fiquei olhando a minhoca, e ela – acho – ficou pensando em mim. Pulava mais que este povo que gosta de pipoca em trio elétrico, e se a minhoca fosse uma menina adolescente cheia de energia, certamente as câmeras de TV não iriam perder uma performance tão caprichada. Ela voava em cima da terra, revoltando, revirando, meio bailarina do Cirque de Soleil que parece não ter ossos ou juntas – o que é o caso da minhoca, totalmente invertebrada – e meio mulata de escola de samba, o corpo em verdadeiro S que oscilava de todos os lados. Até que ela parou, durinha.

Nesta hora eu lembrei daquele seriado americano Terra de Gigantes – e a gigante era eu, a minhoca era a “pequenina”, como diziam os monstros ao se referirem aos humanos nos episódios. Eu pensei que ela estava pensando assim: vou ficar durinha, sem mexer, para que ela, a monstra, pense que eu não existo e me confunda com o resto da terra, assim as chances de sobreviver seriam maiores. Eu até imaginei os sentimentos confusos na cabecinha da minhoca: medo, fragilidade, rompantes de coragem e até um leve pensamento de ataque, até porque ela deve ter notado que eu, a monstra, sou mulher, e em geral mulheres tem pavor de minhocas. Olha só que arma poderosa ela, a minhoca, tinha nas mãos: a intimidação pelo medo!

Mas acho que a minhoca sacou rapidinho que eu só era a grande, mas não a monstra – ou seja, que eu não era do mal. Ficou ali parada bem um minuto, que é tempo demais para a vida da minhoca, pelo pouco que me lembro de biologia da sexta série. A professora dizia que os invertebrados duravam pouco, e quanto menores mais frágeis. Pode até ser verdade, daí imagino que a minhoca ficou paralisada por um tempão.

Nós nos olhamos um pouco mais, e nesta hora de contemplação juro que senti uma simpatia genuína pela menina. Querendo ou não, ela estava lá fazia tempo, até porque não tenho o hábito de trazer minhocas para casa visando uma vida melhor para minhas plantas. Nesta brincadeira descobri que tenho mais um pet, um animal de estimação totalmente independente em minha casa – bem mais independente do que dizem que os gatos são, já que nem alimentar esta boca eu preciso.

Pelo meu cálculo a minhoca está morando comigo já faz um semestre. E neste tempo o vaso com plantas ficou pequeno, as raízes das plantinhas estavam saindo pelos furinhos de onde escoa a água. Fui informada pelo vendedor de plantas que esse é o mais importante sinal que a planta requer mais espaço. Bacana saber que as plantas sinalizam facilmente sua necessidade de espaço e alimento. Fica bem fácil lidar com elas não é?

Nestes seis meses posso entender que a minhoca foi co-responsável pelo sucesso deste meu vaso verdejante. As plantas tinham chegado pequenininhas e criaram asas, ou melhor, raízes. Seguramente, a minhoca fez bem feitinha a parte dela, contribuindo para a minha paz no quesito jardinagem. Com tudo isso, ela merece viver bem.

Deixei a minhoca ali quietinha e cobri com um bocado de terra, dei uma mexida com o pincel – agora mão na terra só em atividade esotérica e olhe lá – e depois de um minuto coloquei a mudinha cheia de raízes aparentes pedindo um lugar na terra para alçar seu lugar ao sol. Percebi que a minhoca entendeu a mensagem e não deu mais as caras no horizonte e na luz. Ficou na dela, escondidinha atrás das mudas e bem embaixo da terra, que deve ser do jeito que ela gosta.

Ter feito isso deu um alívio. Pensei que ela, minhoca, poderá inclusive contribuir comendo as formigas que aparecem nos meus vasos – nunca entendi o porque, será por algum açúcar oculto? – ou ainda pode ser que a minhoca assuste alguma abelha desavisada que queira se aproveitar das flores de manjericão que estão roxinhas, perfumadas e prontas para o momento que eu queira fazer aquele molho vermelho saboroso. Será que abelha tem receio de minhoca?

Quando terminei meu vaso - agora novo vaso - pensei que talvez esta experiência tenha sido boa pra minhoca também. Ela pode ter aproveitado este momento de interação social interracial para perceber que humanos podem ser legais com os invertebrados e portanto, deixar de imaginar o dia que queiram atacar a terra numa revolução silenciosa saindo de seus vasos e terras em direção a diversas mocinhas assustadas que vêem na minhoca muito mais do que ela pode oferecer, em termos de horror macabro. Vão todos perceber que nada é mais simples do que ser simplesmente minhoca.

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